
Quando, em 1949, Theodor Adorno afirmou que escrever poesia depois de Auschwitz era bárbaro, já os poetas polacos do pós-guerra tinham demonstrado que a questão era outra: a de inventar uma nova dicção para a poesia.
Zbigniew Herbert que se estreou em 1956 já tinha, portanto, assimilado a nova dicção da poesia polaca, cultivando o verso branco ou o livre em poemas de versos geralmente curtos desprovidos de sinais de pontuação, em que o ritmo da leitura é amiúde o elemento que destrinça relações sintáticas construindo o sentido das frases.
O investigador Jerzy Kwiatkowski argumentou que «a linguagem de Herbert se esforça por alcançar a imperceptibilidade e a transparência» e, nesta linha de pensamento, Miłosz, que traduziu Herbert para inglês, comentou que «os poemas de Herbert se traduzem excepcionalmente bem porque a sua força não é a língua mas o pensamento». Ora, aquilo que se desenha como a traduzibilidade da poesia de Herbert pode constituir uma armadilha para o tradutor, porquanto o perigo de transformar um texto poético em prosa espreita a cada passo no processo tradutório. Esses, porém, começam com as diferenças estruturais entre as duas línguas. Se o polaco por ser uma língua sintética e flexionada acolheu harmoniosamente a nova dicção da poesia polaca, já o português, uma língua analítica que não dispensa artigos, preposições e conectores oferece alguma resistência à parcimónia gramatical. Tal faz com que, no que respeita à metrificação, a tradução para português se processe com um indesejado aumento de sílabas métricas.
Assim, com vista a aproximar a voz moderada da poética herbertiana à língua portuguesa procedeu-se à omissão de artigos e do verbo ser/estar sempre que possível por forma a acolher o carácter sintético do polaco, por exemplo: «meu pai» em vez de «o meu pai». De modo semelhante, adjectivos possessivos sofreram transposições, técnica que consiste em alterar a classe gramatical das palavras, tendo sido alterados para pronomes pessoais átonos o que permitiu a redução das sílabas métricas, por exemplo: «paira-me sobre a cabeça» em vez da tradução literal: «paira sobre a minha cabeça».
Ainda no âmbito das técnicas de redução de sílabas para manter o ritmo e a cadência, aplicou-se a técnica da transposição no que respeita à troca do advérbio pelo adjectivo, já que a formação dos advérbios em português implica o acréscimo de um sufixo [-mente] de duas sílabas. Por exemplo, um verso que no original reza «As sombras derretem-se suavemente» foi vertido para português como «suaves as sombras derretem-se».
Por se considerar ter uma acepção mais poética, foi ainda utilizada a técnica de tradução que substitui nomes comuns pelos respectivos colectivos. Assim, versos que no original rezam literalmente «Sobre a tradução de poemas» e «à sombra dos ramos» foram vertidos como «Sobre a tradução de poesia» e «à sombra da ramagem».
Levando em consideração a máxima do poeta e tradutor Herberto Helder que diz não haver fidelidade mais bizarra do que a gramatical, evitou-se o uso de construções perifrásticas e da mesóclise, uma vez que a tolerância da poesia sobretudo a esta última não é muito alta. Assim, em vez de fiéis traduções gramaticais como «Então a pátria parecer-te-á pequena» optou-se por «A pátria então te parecerá pequena», sendo esta forma verbal mais poética e mais recorrente na poesia portuguesa.
Foi ainda respeitada a pouca pontuação existente, seus sinais gráficos e sua omissão, bem como a ortografia no uso de maiúsculas e minúsculas.
A fim de compensar intertextualidades com obras polacas que o leitor português poderá não identificar, a tradução portuguesa dialoga, por meio de recursos lexicais, com textos canónicos da língua portuguesa, como a Bíblia e a obra de Fernando Pessoa. Por exemplo: «Jonas ora no ventre do peixe» em vez da tradução literal «Jonas ora na barriga do peixe»; «sua força oculta e patente despertou desassossego entre filósofos» e «não sei de onde me vem este cansaço desassossego tormenta», versos em que se substituiu «inquietação» pelo «desassossego» pessoano.
Abordar a tradução de poesia sem referência a espaços de intraduzibilidade seria falacioso na medida em que não há técnicas de tradução, por exemplo, para a polissemia e jogos linguísticos, que se perdem na transferência de uma língua para outra. Nos versos «no Domingo atrás da ponte nos arbustos espinhosos na areia fria / na erva cor-de-ferrugem raparigas recebem soldados», em polaco o adjectivo kolczasty forma duas colocações drut kolczasty «arame farpado» e kszak kolczasty «arbusto espinhoso» — este aspecto perde-se na tradução porque o português utiliza adjectivos diferentes nas colocações correspondentes.
O mesmo acontece no mais difícil de todos os poemas, curiosamente, dedicado à tradução «Sobre a tradução de poesia», em que a palavra polaca słupek, que significa «poste» e «pistilo», faz parte da frase feita być głową w słupek «bater com a cabeça no poste» e, no contexto do poema, significa ainda, devido à polissemia «bater com a cabeça no pistilo». Ora, no texto em apreço, Herbert compara a par e passo o tradutor de poesia com um abelhão desajeitado, traçando paralelamente uma metáfora que percorre todo o poema. A tradução para português, ao ter de optar por um dos sentidos — poste ou pistilo, apaga a polissemia, contribuindo involuntariamente para a perda de um sentido fulcral no texto de partida.
Normalmente, a tradução de poesia, principalmente quando rimada, exige do tradutor a elaboração de duas versões a partir das quais nasce a terceira, mais definitiva. No caso da tradução da poesia de Zbigniew Herbert, atendendo à sua aparente traduzibilidade, o processo tradutório consistiu sobretudo na alternância constante entre traduzir e ler em voz alta com o intuito de, por um lado, avaliar até que ponto a dicção de Herbert se repercutia na língua portuguesa e, por outro, alcançar uma versão mais harmoniosa e mais ritmada, versão essa que se tornou definitiva não porque a tradutora deu o trabalho por concluído, mas porque existem prazos a cumprir.
Não é por acaso que se diz que traduzir poesia é impossível e, se como tradutora, abelhão desajeitado, o faço é porque aceito o desafio, norteada ainda pelo desejo de oferecer ao leitor português a possibilidade de ler um dos grandes poetas europeus do século XX.(*)
Teresa Fernandes Swiatkiewicz
(*excerto da Nota à Tradução do livro Poesia Quase Toda, de Zbigniew Herbert)